Baptista Luz

20/07/2020 Leitura de 37’’

Aspectos dos Contratos de Locação em Shopping Centers diante do novo Coronavírus

20/07/2020

O novo Coronavírus trouxe impactos ainda imensuráveis na economia. Um dos setores mais afetados foi o de varejo, especialmente lojas localizadas em Shopping Centers. Neste artigo, falaremos sobre boas práticas para renegociação de contratos de locação com Shopping Centers.

1.    Introdução

Não é novidade que o novo Coronavírus afetou – e muito – o setor de varejo no Brasil. Entre o final de março e o início de junho de 2020, a grande maioria dos Shopping Centers no país esteva fechada[1], em razão de decretos de isolamento social visando conter a pandemia. Os impactos econômicos deste fechamento foram consideráveis: segundo a Associação Brasileira de Lojistas de Shopping (“ALSHOP”), até 19 de maio mais de 15 mil lojas haviam declarado que fechariam suas portas, e 120 mil pessoas já tinham sido demitidas[2].  Um levantamento feito pela Associação Brasileira de Shopping Centers (“ABRASCE”) também estimou que o setor já acumulava cerca de R$ 25 milhões em perdas até 20 de maio de 2020[3].

Com a flexibilização da quarentena em diversos estados brasileiros, foi negociada também a reabertura gradual de Shopping Centers, que ocorre a passos menores, com diversas restrições. Atualmente, uma grande parcela destes estabelecimentos pode operar somente por até quatro horas por dia, uma vez comprovado o cumprimento de regras de higiene determinadas pelo governo municipal, entre elas, por exemplo, a proibição de uso de provadores, e comprovado também que a abertura ocorrerá com apenas 20% de sua capacidade de público[4]. Contudo, grandes players deste setor, como a ABRASCE e a ALSHOP, vêm intensificando as negociações com vereadores locais e interlocutores de governos dos Estados e Municípios. Em São Paulo, por exemplo, uma das grandes demandas é aumentar o tempo de abertura de shoppings, de quatro para seis horas de funcionamento por dia[5].

Em razão da diminuição do fluxo de consumidores nos Shopping Centers e, por consequência, significativa redução de faturamento, muitos lojistas têm buscado a renegociação contratual, isto é, a revisão dos termos contratuais de suas relações com Shopping Centers, com o objetivo de reduzir seu custo ocupacional e, assim, evitar o encerramento de seus negócios.

Neste artigo, falaremos sobre a natureza dos contratos de locação em Shopping Centers, como o novo Coronavírus impacta este setor e sobre boas práticas para este período de renegociação.

 

2.    Contratos de locação em Shopping Center

A natureza dos contratos de locação em Shopping Centers

 

Antes de entendermos o contexto atual, precisamos, em primeiro lugar, entender como funcionam os contratos de locação comercial, como aqueles firmados entre lojistas e Shopping Centers.

A norma responsável pela regulamentação das relações contratuais brasileiras é, sobretudo, a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que institui o Código Civil (“CC/02”) brasileiro. Em geral, as regras previstas no Código Civil determinam que as partes são livres para celebração de contratos, nos limites de sua função social.

Nas relações contratuais privadas, devem prevalecer o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual, sendo presumido que as partes contratantes possuem uma relação simétrica e paritária (até que se prove o contrário, a partir de elementos concretos). Desse modo, busca-se garantir que elas possam negociar livremente quais serão os termos de seu contrato, de modo a assegurar a sua liberdade para decidir quais serão os padrões objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução, além de previsões sobre como preferem alocar os riscos decorrentes do objeto do contrato entre si. Nesse sentido, vale ressaltar também que a revisão contratual ocorrerá somente de maneira excepcional e limitada[6].

Por isso, quando falamos em Direito Contratual, podemos separar duas categorias de contratos: (i) aqueles que são típicos, que tem previsão e requisitos delimitados na forma da lei, e (ii) aqueles que são atípicos, que não são propriamente previstos em lei mas que, em nome da autonomia das partes, podem ser celebrados conforme seu melhor entendimento, desde que respeitem os requisitos para validade do negócio jurídico, previstos no artigo 104 e 197 do Código Civil. Assim, para que um contrato, por exemplo, seja válido, é necessário que o acordo entre as partes seja feito entre agentes capazes[7]; possua objeto lícito, passível, determinado ou determinável; e atenda à forma prescrita ou não defesa em lei. Vale ressaltar, portanto, que podemos celebrar contratos atípicos porque o legislador brasileiro entende que a validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, salvo quando a lei expressamente a exigir.

Nesta lógica, o Código Civil brasileiro estabeleceria, portanto, um panorama geral das normas contratuais brasileiras, regulamentando, por exemplo, Contratos de Locação de Coisas, Contratos de Compra e Venda, Contratos de Doação, Contratos de Mútuo, entre outros, além dos princípios e diretrizes contratuais a serem obedecidos pelas partes. Contudo, como dito anteriormente, outras Leis podem incidir também sobre a celebração de contratos, contendo normas específicas para determinados setores, a depender da natureza jurídica do negócio acordado. Este é o caso, por exemplo, da locação de imóveis, matéria regulamentada pela Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991, que dispõe sobre as locações dos imóveis urbanos e os procedimentos a elas pertinentes.

Portanto, um contrato de locação de uma loja perante um Shopping Center seria, sim, um contrato típico, na medida em que deve observar os princípios previstos no Código Civil brasileiro e tem seus procedimentos regulados pela Lei nº 8.245/91. Contudo, é importante frisar que a própria Lei de Locação de Imóveis Urbanos determina, em seu artigo 54, que “nas relações entre lojistas e empreendedores de shopping center, prevalecerão as condições livremente compactuadas nos contratos de locação respectivos”. Dessa forma, ainda que se trate de um contrato típico por contar com previsão expressa em lei,  especialmente nos contratos de locação em Shopping Centers, prevalecem as condições pactuadas entre as partes e não as disposições da Lei.

Nesta modalidade contratual, são apresentadas características locatícias e elementos próprios e necessários para o êxito do empreendimento[8], e é preciso entender, primeiro, o que é e quem são os agentes envolvidos nesta operação para que possamos compreender, em linhas gerais, a estrutura operacional de negócios em Shopping Centers. A partir disso, prosseguiremos para uma análise da racionalidade contratual desta modalidade.

 

Conceito e estrutura de Shopping Center

 

Fábio Ulho Coelho delimita o conceito do empreendimento conhecido como Shopping Center da seguinte forma:

De fato, o empreendimento denominado Shopping center é mais complexo. Além da construção do prédio, propriamente dita, o empresário deve organizar os gêneros de atividade econômica que nele se instalarão. A ideia básica do negócio é por à disposição dos consumidores, em um local único, de cômodo acesso e seguro, a mais variada sorte de produtos e serviços. Assim, as locações devem ser planejadas, atendendo às múltiplas necessidades do consumidor. Geralmente, não podem faltar em um shopping center certos tipos de serviços (correios, bancos, cinemas, lazer, etc.) ou comércios (restaurantes, lanchonetes, papelarias, etc.), mesmo que a principal atividade comercial seja estritamente definida (utilidades domésticas, moda, material de construção, etc.), pois o objetivo do empreendimento volta-se a atender muitas das necessidades do consumidor. É esta concentração variada de fornecedores que acaba por atrair maiores contingentes de consumidores, redundando em benefício para todos os negociantes[9].

Além disso, é importante pontuar quais são os elementos fundamentais da estrutura que compõe os Shopping Centers. São eles[10]:

  • Lojas-âncoras. São lojas de grande porte já conhecidas e difundidas entre o público, geralmente localizadas nas extremidades do imóvel, e que incentivam, em grande parte, a visita de consumidores ao Shopping Center.
  • Lojas Satélites. São lojas de menor porte e escala quando comparadas com as lojas-âncoras, mas que também trazem estima ao Shopping Center.
  • Tenant mix. É a estruturação do complexo de lojas de modo a atender o objetivo comercial almejado pelo empresário.
  • Clientela de corredores. É um conceito formado a partir da perspectiva de não possuir lojas voltada para a rua, com o fim de estimular a circulação dentro do centro e o consequente interesse por todas as lojas que o integram.

A motivação para ingressar nesta relação contratual torna-se clara: Shopping Centers simbolizam um dos mais importantes centros mercantis na economia moderna, justamente por buscar endereçar em um só lugar todas as necessidades dos consumidores. Por isso, trata-se de uma locação de natureza comercial.

 

Agentes no Contrato de Locação em Shopping Center

 

Um contrato de Locação em Shopping Center tem os seguintes agentes: (i) lojistas e (ii) empreendedores do Shopping Center. Eles equivalem, respectivamente, às figuras de locatários e locadores.

Sobre o empreendedor do Shopping Center, vale ressaltar que seu objetivo maior é exercer a atividade econômica, ou seja, gerar riqueza. Ele projeta, executa e administra toda a estrutura formada pela organização do conjunto de lojistas, para potencializar seus lucros[11]. Neste arranjo contratual, sua participação tem a finalidade de implementar o centro comercial (Shopping Center), oferecer vantagens aos lojistas e ao público, como forma de ampliar os frequentadores e, consequentemente, as vendas das lojas ali situadas.

Por outro lado, o lojista, também visando o lucro, ingressa nesta relação contratual com o objetivo de usufruir da estrutura do Shopping Center ao operar sua unidade comercial.

 

Etapas de operacionalização no Contrato de Locação em Shopping Center

 

Geralmente ocorrem as seguintes etapas de operacionalização para celebração de um contrato de locação em Shopping Center: primeiro, o empreendedor fixa a verba de locação de cada unidade, que é determinada pelo preço do metro quadrado na região e pela localização do empreendimento.

Feito isso, é estipulado um índice de rateio de despesas, que equivale ao pagamento de uma espécie de “condomínio”, que não obedece a lógica de preço único visto que há diferentes tipos de estabelecimentos em Shopping Centers, com necessidades distintas[12].

Além disso, o empreendedor poderá, a depender de previsões contratuais, cobrar do lojista outras variáveis de verba alocatícia, como fundos de promoção,  aluguéis em dobro em meses específico, e o aluguel percentual, por exemplo.  

Fundos de promoção são figuras usualmente previstas em contratos de locação em Shopping Center, organizados para o gerenciamento de verbas pagas pelos lojistas, como rateio de despesas relacionadas à imagem e propaganda do Shopping Center. Neste sentido, Rubens Requião nos explica que:

“Com efeito, é condição do contrato de locação a contribuição para o fundo,  estabelecido por cláusula das normas gerais e complementares, bem como o ingresso e a permanência do locatário no quadro de sócios da associação de lojistas, que o administrará. Esse fundo destinar-se-á a manter as despesas de propaganda e promoções, para o qual o locatário concorrerá com uma contribuição periódica, geralmente trimestral, em três parcelas iguais, sucessivas, calculadas de acordo com as normas[13]

Logo, percebe-se que é a Associação de Lojistas, pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos e formada com o objetivo de promover a integração entre os lojistas do Shopping (além de fazer com que haja um troca entre eles sobre experiências de melhores práticas comerciais, bem como de direcionar e promover ações de marketing), o órgão responsável por atender às despesas com o fundo de promoção[14].

Exemplos práticos de campanhas geridas pelos Fundos de Promoção seriam realizar campanhas de publicidade para o Shopping em épocas comemorativas, como ocorre durante a época do Natal, e outros tipos de propaganda em benefício dos lojistas do Shopping.

Além disso, o empreendedor responsável pelo Shopping Center poderá cobrar aluguéis em dobro em meses específicos, como comumente ocorre durante o mês de Dezembro, no qual há maior faturamento das lojas em razão do Natal. Atualmente, também é possível identificar a cobrança de alugueis em dobro em outros meses em que há datas comemorativas que geram relevante movimento no comércio, como é caso do Dia das Mães em maio.

o aluguel percentual representa a cobrança adicional ao aluguel mínimo realizada com base do faturamento das lojas. Quando o faturamento da loja excede o limite mínimo estabelecido e calculado pelo Shopping Center com base no tipo de loja e expectativa de faturamento da mesma, entra em cena a figura do aluguel percentual, baseado no desempenho do lojista[15].

 

 

Obrigações e Princípios observados no Contrato de Locação em Shopping Center

 

Além de diretrizes sobre Contratos de Locação previstas no Código Civil brasileiro, restam também previsões legais sobre a matéria na Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991 (“Lei nº 8.245/91”), como vimos anteriormente.

Esta Lei prevê, em seu artigo 54, que “nas relações entre lojistas e empreendedores de shopping center, prevalecerão as condições livremente pactuadas nos contratos de locação respectivos e as disposições previstas nesta lei”.  

Ainda que as partes disponham de grande liberdade para celebrarem contratos de locação de imóveis, a Lei nº 8.245/91 determina algumas obrigações inafastáveis aos seus agentes.  Por exemplo, via de regra, o Locador não estará obrigado a renovar o contrato de locação destinado ao comércio em algumas situações específicas[16], contudo, nas locações de espaço em Shopping Centers, o locador (empreendedor do Shopping Center) não poderá recusar a renovação do contrato nessas hipóteses (quais sejam, retomada do imóvel para uso próprio ou para transferência de fundo de comércio existente há mais de um ano, cujo detentor seja o locador, seu cônjuge, ascendente ou descendente para fins sucessórios).

Além disso, a Lei prevê que o empreendedor não poderá cobrar do locatário em Shopping Center as despesas com obras ou substituições de equipamentos, que impliquem modificar o projeto ou o memorial descritivo da data do habite-se e obras de paisagismo nas partes de uso comum. Nesta modalidade, o empreendedor tampouco poderá cobrar do locatário despesas de obras de reforma ou acréscimos que interessem à estrutura integral do imóvel, pintura das fachadas, empenas, poços de aeração e iluminação, bem como das esquadrias externas, e indenizações trabalhistas e previdenciárias pela dispensa de empregados, ocorridas em data anterior ao início da locação.

Vale pontuar que o Contrato de Locação em Shopping Centers obedece a alguns princípios contratuais, como:

/ Pacta sunt servanda: o contrato deve ser cumprido, prevalecendo as disposições acordadas pelas partes.

/ Autonomia da vontade: visto que os contratos criarão riqueza, a liberdade das partes deve ser preservada para buscarem o que é melhor para si. Existem sub-princípios da autonomia da vontade, como a (i) liberdade da forma e (ii) default rules. O primeiro permite a criação de qualquer contrato em forma livre, desde que sua base seja consensual entre as partes – diminuindo os custos de transação, e aproximando as partes e a conclusão de contratos simples. O segundo subprincípio afasta regras padrão da lei ou jurisprudência – fazendo prevalecer, assim, as vontades das partes na execução do contrato.

/ Boa-fé objetiva:  trata-se de um “norte” de comportamento a ser seguido pelas partes, para que seja protegida a sua expectativa legítima, contemplando um feixe de deveres contratuais implícitos de lealdade, transparência e cooperação entre as partes que celebram o contrato.

/ Função social do contrato: obrigação  de maximizar o bem-estar social. Sob a ótica de Análise Econômica do Direito, isso deve ser compreendido como o objetivo de reduzir ao máximo os custos de transação, para possibilitar o fluxo de trocas de mercado – alocando os riscos dos agentes econômicos de forma mais eficiente.

3.    Os impactos do novo Coronavírus: por que tais contratos podem ser revistos?

Observamos que os contratos de locação em Shopping Centers são estruturas rígidas e que abrem pouco espaço para negociação entre lojistas e empreendedores destes centros comerciais.

Este cenário se torna ainda mais preocupante diante do momento em que vivemos atualmente, em razão da pandemia gerada pelo novo Coronavírus. No Brasil, foi determinado o estado de calamidade pública até, pelo menos, 31 de dezembro de 2020 por conta da pandemia, conforme disposições do Decreto-Legislativo nº 06/20. Segundo levantamentos feitos pela Fundação Getulio Vargas (FGV), em parceria com o instituto suíço KOF da ETG Zurique, a crise de saúde terá um abalo sem precedentes para a atividade econômica em todos os continentes[17].

 

A revisão de contratos de locação em Shopping Centers baseada na teoria da imprevisão

 

Desde o início da pandemia, o Poder Judiciário vem consolidando o entendimento de que, diante de faturamentos muito comprometidos, os contratos envolvendo lojistas de varejo, principalmente, devem ser revistos. Assim, os tribunais se colocam mais favoráveis aos lojistas, e fazem uso da teoria da imprevisão, que determina: a necessidade de que se atenda ao “princípio da justiça contratual, que impõe o equilíbrio das prestações nos contratos comutativos, a fim de que os benefícios de cada contratante sejam proporcionais aos seus sacrfícios[18].

Nesse sentido, o Tribunal de Justiça de São Paulo já havia sedimentado, anos atrás, o seguinte entendimento sobre a teoria da imprevisão:

 “A teoria da imprevisão decorre da constatação de que o contrato, celebrado para ser respeitado e cumprido, segundo as mesmas condições existentes no momento da celebração, pode ser alterado, excepcionalmente, se ocorrerem fatos supervenientes imprevisíveis que estabeleçam o desequilíbrio entre as partes, onerando sobremaneira uma delas, com proveito indevido da outra. Nesta hipótese, incide a cláusula rebus sic stantibus, mediante a qual se retorna ao estado de equilíbrio anterior, afastando- se qualquer hipótese de supremacia e de vantagem indevida de uma das partes, em desfavor da outra que ficaria prejudicada. Segundo a doutrina de Orlando Gomes, “… quando acontecimentos extraordinários determinam radical alteração no estado de fato contemporâneo à celebração do contrato, acarretando conseqüências imprevisíveis, das quais decorre excessiva onerosidade no cumprimento da obrigação, o vínculo contratual pode ser resolvido ou, a requerimento do prejudicado, o juiz altera o conteúdo do contrato, restaurando o equilíbrio desfeito. Em síntese apertada: ocorrendo anormalidade da álea que todo contrato dependente do futuro encerra, pode-se operar sua resolução ou a redução das prestações”.  Para Cunha Gonçalves, há como que um defeito do ato jurídico (segundo o conceito do Direito Brasileiro): “…é tão injusto e imoral aproveitar um contraente, excessivamente, de circunstâncias que para o outro ou para ambos eram imprevisíveis no momento do contrato. (…)”

(TJSP; Apelação Com Revisão 9142407-42.2001.8.26.0000; Relator (a): Carvalho Viana; Órgão Julgador: 3ª Câmara (Extinto 1° TAC); Foro de São Caetano do Sul – 1ª. Vara Cível; Data do Julgamento: 19/03/2002; Data de Registro: 15/05/2002).

O Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) também já se posicionou sobre a definição da Teoria da Imprevisão, inclusive, em matéria de contratos de locação em Shopping Centers, quando questionado sobre a validade da cláusula de 13º aluguel nesta modalidade de contratação:

DIREITO CIVIL. VALIDADE DA CLÁUSULA DE 13º ALUGUEL EM CONTRATO DE LOCAÇÃO EM ESPAÇO DE SHOPPING CENTER.

Não é abusiva a mera previsão contratual que estabelece a duplicação do valor do aluguel no mês de dezembro em contrato de locação de espaço em shopping center. De início, cabe ressaltar que o contrato de locação deve ser analisado com base no disposto no art. 54 da Lei de Locações (Lei n. 8.245/1991), que admite a livre pactuação das cláusulas no contrato de locação de espaço em shopping center firmado entre lojistas e empreendedores, observadas as disposições da referida lei. O controle judicial das cláusulas contratuais constantes de contrato de locação de espaço em shopping center deve ser estabelecido a partir dos princípios reitores do sistema de Direito Empresarial, partindo-se, naturalmente, do disposto no art. 54 da Lei de Locações. Com efeito, a locação de espaço em shopping center é uma modalidade de contrato empresarial, contendo fundamentalmente os seguintes elementos: o consentimento dos contratantes, a cessão do espaço e o aluguel. O aluguel em si é composto de uma parte fixa e de uma parte variável. A parcela fixa é estabelecida em um valor preciso no contrato com possibilidade de reajuste pela variação da inflação, correspondendo a um aluguel mínimo mensal. A parcela variável consiste em um percentual sobre o montante de vendas (faturamento do estabelecimento comercial), variando em torno de 7% a 8% sobre o volume de vendas. Se o montante em dinheiro do percentual sobre as vendas for inferior ao valor do aluguel fixo, apenas este deve ser pago; se for superior, paga-se somente o aluguel percentual. No mês de dezembro, é previsto o pagamento em dobro do aluguel para que o empreendedor ou o administrador indicado faça também frente ao aumento de suas despesas nessa época do ano, sendo também chamado de aluguel dúplice ou 13º aluguel. A cobrança do 13º aluguel é prevista em cláusula contratual própria desse tipo peculiar de contrato de locação, incluindo-se entre as chamadas cláusulas excêntricas. A discussão acerca da validade dessa cláusula centra-se na tensão entre os princípios da autonomia privada e da função social do contrato. De acordo com doutrina especializada, o princípio da autonomia privada corresponde ao poder reconhecido pela ordem jurídica aos particulares para dispor acerca dos seus interesses, notadamente os econômicos (autonomia negocial), realizando livremente negócios jurídicos e determinando os respectivos efeitos. A autonomia privada, embora modernamente tenha cedido espaço para outros princípios (como a boa-fé e a função social do contrato), apresenta-se, ainda, como a pedra angular do sistema de direito privado, especialmente no plano do Direito Empresarial. O pressuposto imediato da autonomia privada é a liberdade como valor jurídico. Mediatamente, o personalismo ético aparece também como fundamento, com a concepção de que o indivíduo é o centro do ordenamento jurídico e de que sua vontade, livremente manifestada, deve ser resguardada como instrumento de realização de justiça. O princípio da autonomia privada concretiza-se, fundamentalmente, no direito contratual, por meio de uma tríplice dimensão: a liberdade contratual, a força obrigatória dos pactos e a relatividade dos contratos. A liberdade contratual representa o poder conferido às partes de escolher o negócio a ser celebrado, com quem contratar e o conteúdo das cláusulas contratuais. É a ampla faixa de autonomia conferida pelo ordenamento jurídico à manifestação de vontade dos contratantes. Assevera doutrina que o princípio da relatividade dos contratos expressa, em síntese, que a força obrigatória desse negócio jurídico é restrita às partes contratantes (res inter alios acta). Os direitos e as obrigações nascidos de um contrato não atingem terceiros, cuja manifestação de vontade não teve participação na formação desse negócio jurídico. De outro lado, nenhum terceiro pode intervir no contrato regularmente celebrado. Limita-se, assim, até mesmo, a atuação legislativa do próprio Estado, em virtude da impossibilidade de uma lei nova incidir retroativamente sobre contrato regularmente celebrado por constituir ato jurídico perfeito. Entretanto, admite-se a revisão administrativa e judicial dos contratos nos casos expressamente autorizados pelo ordenamento jurídico. Já a força obrigatória dos contratos é o contraponto da liberdade contratual. Se o agente é livre para realizar qualquer negócio jurídico dentro da vida civil, deve ser responsável pelos atos praticados, pois os contratos são celebrados para serem cumpridos (pacta sunt servanda). A necessidade de efetiva segurança jurídica na circulação de bens impele a ideia de responsabilidade contratual, mas de forma restrita aos limites do contrato. O exercício da liberdade contratual exige responsabilidade quanto aos efeitos dos pactos celebrados. Assim, o controle judicial sobre eventuais cláusulas abusivas em contratos empresariais é mais restrito do que em outros setores do Direito Privado, pois as negociações são entabuladas entre profissionais da área empresarial, observando regras costumeiramente seguidas pelos integrantes desse setor daeconomia. Ressalte-se que a autonomia privada, como bem delineado no Código Civil de 2002 (arts. 421 e 422) e já reconhecido na vigência do Código Civil de 1916, não constitui um princípio absoluto em nosso ordenamento jurídico, sendo relativizada, entre outros, pelos princípios da função social, da boa-fé objetiva e da prevalência do interesse público. Essa relativização resulta, conforme entendimento doutrinário, o reconhecimento de que os contratos, além do interesse das partes contratantes, devem atender também aos “fins últimos da ordem econômica”. Nesse contexto, visando à promoção desses fins, admite o Direito brasileiro, expressamente, a revisão contratual, diante da alteração superveniente das circunstâncias que deram origem ao negócio jurídico (teoria da imprevisão, teoria da base objetiva etc.). 

(REsp 1.409.849-PR, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 26/4/2016, DJe 5/5/2016. Grifo nosso).

Estes julgados nos demonstram, portanto, que a teoria da imprevisão é pautada pela realidade vivenciada pelas partes no curso do contrato celebrado. Assim, a teoria da imprevisão enseja a possibilidade de revisão de contratos de locação em Shopping Centers quando do acontecimento de fatos que não poderiam ser previstos pelas partes.

 

A revisão de contratos de locação em Shopping Centers baseada no entendimento dos tribunais: uma análise jurisprudencial.  

 

Nos tempos atuais, em que Shoppings Centers operam com horário reduzido, a variar conforme regulação de diferentes estados e municípios e que as pessoas enfrentam inúmeras dificuldades em saírem de suas casas por conta da pandemia, muitos juízes tem se fundamentado dna teoria da imprevisão para determinarem a possibilidade de renegociação de aluguéis nos termos contratados pelas partes na era pré-COVID.

Para mapear melhor este cenário, levantamos a posição de diversos tribunais brasileiros diante dos pedidos de redução dos valores dos aluguéis pagos por lojistas em função da queda de seu faturamento, causada pela pandemia do novo Coronavírus. As pesquisas foram realizadas no âmbito de casos distribuídos no STJ, no Tribunal de Justiça de Minas Gerais (“TJMG”), no Tribunal de Justiça do Distrito Federal(“TJDFT”), no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (“TJRJ”), no Tribunal de Justiça de São (“TJSP”), no Tribunal de Justiça de Santa Catarina (“TJSC”) e no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (“TJRS”). No STJ, TJRS e TJSC não foram encontrados resultados de casos sobre esta matéria. As pesquisas consideraram os casos julgados e publicados até o início do mês de julho de 2020.

Os resultados da pesquisa variaram entre os estados, conforme aponta tabela abaixo. Nela, foram incluídos o número total de casos encontrados de acordo com seus tribunais de origem, dividindo-os a partir da concessão ou não do pedido de redução do valor de aluguéis pagos por lojistas. É interessante notar que na coluna dos casos de pedidos concedidos, contabilizou-se não apenas as medidas concedidas em juízo na própria decisão analisada, como também os casos em que (i) os pedidos de desconto de aluguéis por lojistas foram concedidos em decisão anterior e o locatário buscou aumentar a extensão ou o desconto de aluguéis que já haviam sido concedidos anteriormente, tendo seu segundo pedido (referente à extensão) negado e (ii) o locador já havia concedido desconto no aluguel para o locatário, que buscou aumentar tal desconto em juízo, mas teve seu pedido de extensão negado.

Ao total, foram encontrados 90 casos envolvendo pedidos de liminar em contratos de locação comercial. Em 68 julgados, as cortes votaram pelo deferimento da liminar para reduzir o valor do aluguel comercial e/ou conceder descontos nos encargos locatícios. Em 22 julgados, os tribunais entenderam que não era devida a liminar. Assim, pode-se dizer que, em 75% dos casos analisados, a liminar pleiteada pelo locatário foi deferida, enquanto, em 25% dos casos, tal medida foi indeferida.

Vale frisar que, nesta pesquisa, 37 dos casos analisados eram referentes a locações em Shopping Centers, sendo que 34 dos pedidos de redução de aluguel foram concedidos, e apenas 3 foram negados. Isso se deve ao fato de que, para os tribunais brasileiros, a redução na circulação de pessoas nos centros comerciais, aliada à queda do faturamento das lojas, justificam a concessão da liminar pleiteada pelos locatários.

Em resumo, os pedidos concedidos levaram em conta os seguintes argumentos:

/ A redução do faturamento da loja desde o início da pandemia, acompanhada de documentos que comprovem tal fato;

/ A diminuição na circulação de pessoas;

/ A existência de decretos municipais que autorizam o funcionamento apenas de serviços essenciais, excluindo-se destes as lojas e o comércio em geral.

 

No âmbito de argumentos jurídicos, prevaleceu o uso da teoria da imprevisão e o princípio da boa-fé e da probidade.

Contudo, é importante pontuar que o que está sendo concedido pelos tribunais não é a suspensão total do aluguel comercial, mas sim a outorga de desconto, que, normalmente, varia entre 30% e 50% do valor dos alugueis mensais devidos.  Em sua maioria, os julgadores entendem que, diante de uma obrigação que se torna demasiadamente onerosa para uma das partes, não é cabível a suspensão total das obrigações assumidas, mas sim a resolução do contrato. Por esse motivo, normalmente o pedido de suspensão total do valor do aluguel e dos encargos locatícios é negado, por ausência de fundamento legal.

Especificamente em relação aos aluguéis de espaços comerciais localizados em Shopping Centers, observa-se que foram encontradas diferentes medidas concedidas aos lojistas, seja em negociação direta com o shopping, seja através de liminar deferida pelo juiz. Dos 34 casos de concessão de medidas para lojistas de shopping, quase metade dos julgados determina o desconto apenas no valor do aluguel, com a manutenção da cobrança do condomínio e de Fundos de Promoção (15 casos). Os motivos para negativa dos pedidos de redução ou suspensão das taxas condominiais é que, mesmo durante a pandemia, os shoppings continuam tendo gastos de luz, água, segurança. Já os motivos para o indeferimento da redução ou suspensão do Fundo de Promoção é que, mesmo durante a pandemia, os shoppings continuam veiculando propagandas nas redes sociais e em outros meios de comunicação.

O Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, determinou a possibilidade de suspensão de pagamento de metade do aluguel, não incluído o fundo de promoção, em casos de lojas que estavam fechadas à época, em decorrência do Coronavírus, como podemos perceber nas decisões abaixo:

 AGRAVO DE INSTRUMENTO. LOCAÇÃO DE IMÓVEL COMERCIAL. AÇÃO RENOVATÓRIA JULGADA PROCEDENTE. PEDIDO DA LOCATÁRIA DE ISENÇÃO DO ALUGUEL MENSAL ENQUANTO DURAR A PANDEMIA do COVID-19. PEDIDO SUBSIDIÁRIO DE ISENÇÃO NÃO INFERIOR A 70% DO ALUGUEL DO IMÓVEL LOCADO. TEORIA DA IMPREVISÃO (ART. 317 DO CC). RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. O impacto no ramo de negócio da agravante é evidente, mas o fechamento do estabelecimento foi necessário em razão da emergência de saúde pública, com o objetivo de evitar proliferação do vírus e pelos danos que provoca na saúde das pessoas. As partes celebraram contrato de locação de imóvel comercial e foi proposta ação revisional de aluguel. Solução para as contendas provenientes da crise da pandemia do COVID-19 devem ser analisadas caso a caso. Não é verossímil a alegação de inexistência de impacto no faturamento da agravante com o fechamento do estabelecimento. Entretanto, a pretensão de isenção total ou de 70% do valor do locativo não merece guarida. A crise gerada pela pandemia constitui evento imprevisto pelas partes e de nenhum modo desejado por qualquer um. Desse modo, como não existe culpa no evento, e o fechamento do estabelecimento comercial constitui uma necessidade para impedir a proliferação da pandemia, ambas as partes devem realizar concessões. De tal modo, a redução do valor do aluguel, enquanto a loja permanecer fechada, para o montante de 50% de seu valor atual é a solução mais plausível.

(TJ-SP. Agravo de Instrumento nº 2084438-27.2020.8.26.0000. São Paulo – Foro Central. Agravante: Marisa Lojas Varejistas. Agravados: espólio de Clotilde Pereira de Toledo Lara e Celina Kiehl Lara Leite Ribeiro)

Em contrapartida, nota-se que, no caso de lojas que se encontravam parcialmente abertas e poderiam operar por delivery, o TJSP negou o pedido de redução de aluguel. Exemplo disto é o caso concreto de um lojista (que exercia atividades enquanto restaurante) que, apesar de já se beneficiar de um acordo celebrado com o empreendedor do Shopping em que operava, no qual o aluguel de março poderia ser parcelado em até 5 vezes a partir de outubro de 2020, pediu suspensão total de aluguel mínimo mensal, condomínio, fundo de promoção e propaganda, por três meses, sob justificativa da teoria da imprevisão. Neste caso concreto, o TJSP entendeu que o pedido era incabível visto a facilitação do acordo oferecido pelo Shopping Center ao lojista (dono do restaurante), e porque o restaurante poderia ainda exercer suas atividades através da modalidade de delivery[19].

 

Na prática: qual tem sido a política implementada por empreendedores de Shopping Centers.

 

Alguns grupos econômicos que administram Shopping Centers, como o Iguatemi, sinalizaram a prática de descontos de aluguel aos lojistas como medida de enfrentamento do novo Coronavírus. Porém, a administradora pondera que será necessária uma abordagem caso a caso, com propostas individuais feitas a cada lojista que compõe seus Shoppings no Brasil. Segundo Cristina Betts, vice-presidente de finanças e relações com investidores da companhia, essa variação se dará enquanto existirem restrições de funcionamento dos shoppings e porque os impactos são distintos para cada setor de atuação [20].

No entanto, em relação ao Condomínio pago pelos lojistas, nada mudou: a cobrança já está sendo retomada ao nível normal nas unidades do grupo Iguatemi que estão reabertas. De acordo com Betts, a liquidez só foi concedida ao lojista durante o pior momento do fechamento, “mas não dá para bancar para sempre”, nas palavras da executiva.

Desde o início da pandemia, algumas associações importantes além das anteriormente mencionadas, como a Associação Brasileira de Franchising (“ABF”) pedem que as administradoras aceitem receber um aluguel percentual sobre o valor de faturamento, e não a taxa prefixada no contrato. Outro pedido feito foi também para que os Shopping Centers não cobrem estacionamento, para tentar gerar mais fluxo, enquanto o Ministério da Saúde permitir operações[21].

 

4.    Métodos alternativos de faturamento de lojistas: como fica o cálculo do aluguel ajustado em contrato de locação com Shopping Centers?

Os Shopping Centers estavam fechados durante a quarentena, principalmente entre a segunda quinzena de março e, na maioria dos estados e munícipios, até o início de junho. Alguns lojistas se reinventaram durante a pandemia do novo Coronavírus: investiram em plataformas online de compra e venda de seus produtos e, como alternativa para tentar alimentar seu faturamento, mantiveram suas lojas fechadas, mas, nos empreendimentos que permitiram, operacionalizaram dentro de seu espaço no shopping “escritórios” de delivery e “drive-thru” de entregas de compras feitas por seus clientes online[22].

Isso trouxe à tona, contudo, um debate antigo: os valores arrecadados por lojistas na modalidade de e-commerce[23] devem ser computados para fins de cálculo do aluguel percentual, cobrado muitas vezes por empreendedores de Shopping Centers?

Para a apuração do aluguel percentual devido pelo lojista, o empreendedor se vale de diversos instrumentos de fiscalização, ajustados em contrato e nas Normas Gerais da locação[24]. É comum, portanto, que, no contrato de locação em Shopping Centers, haja uma obrigação do lojista em informar ao empreendedor sobre as  vendas realizadas no mês, extrato de redução Z, auditorias online e/ou presencial na loja e até mesmo verificação de livros fiscais e contábeis.

Contudo, segundo Gustavo de Ávila Rajão, para que o faturamento das vendas feitas através em e-commerce seja computado como aluguel percentual, algumas medidas precisam ser tomadas e explicitadas pelo empreendedor. Por exemplo:

a) contemplar nos documentos regulatórios do shopping center (Normas Gerais) ou no próprio contrato de locação que integra o faturamento bruto do lojista para fins de apuração e cobrança de aluguel percentual: (i) a receita com vendas do próprio lojista, bem como a de todos os seus agentes, concessionários, cessionários, representantes e sublocatários, inclusive as vendas externas feitas a clientes, qualquer que seja o seu domicílio; (ii) a receita com vendas de todos os negócios realizados nas lojas ou nelas entabulados, encaminhados ou preparados, incluindo aqueles realizados via internet, mesmo que o faturamento se faça por outra unidade do Lojista ou por terceiro, não importando o local da entrega ou da tradição das mercadorias vendidas;

b) apurar a pessoa (jurídica ou natural) responsável pelo e-commerce;

c) apurar a forma praticada do e-commercee como esta afeta ou tem relação com a ocupação do Lojista no espaço do shopping center[25].

Finalmente, ainda sobre a possibilidade (ou não) de apuração de aluguel percentual em vendas de e-commerce, vale frisar o entendimento provido pelo Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) no Recurso Especial nº 1295808/RJ. Neste caso, a empreendedora Barra Shopping processou as Lojas Americanas, que teve o despejo de sua loja no Barra Shopping autorizado pelo STJ, porque o lojista mantinha um ponto de vendas pela Internet no interior de sua loja, no mesmo estabelecimento comercial.

Porém, a loja da Americanas do Barra Shopping faturava as suas vendas online em nome de empresa diversa, o que foi entendido pelo STJ como dissimulação do faturamento por parte da locatária, incorrendo em um valor do aluguel pago a menor, o que configurou, aos olhos do tribunal, um descumprimento contratual. Abaixo, um trecho da decisão, de relatoria do Ministro João Otávio de Noronha:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. LOCAÇÃO DE ESPAÇO EM SHOPPING CENTER. ALUGUEL COM BASE EM PERCENTUAL DE RENDA BRUTA. MANUTENÇÃO DE PONTO DE VENDAS PELA INTERNET NO INTERIOR DA LOJA. PRODUTOS DE COMÉRCIO ELETRÔNICO FATURADOS EM NOME DE EMPRESA DIVERSA. DISSIMULAÇÃO DO FATURAMENTO DA LOCATÁRIA. VALOR DO ALUGUEL PAGO A MENOR. DESCUMPRIMENTO CONTRATUAL. DESPEJO. CABIMENTO. 1. O lojista que se estabelece em um shopping center integra a sua empresa com o empreendimento para usufruir do planejamento, organização e clientela que o frequenta. Portanto, mais que um simples contrato de locação, há uma relação associativa na qual a colaboração entre os lojistas e o empreendimento é necessária para concretizar-se esse modelo de exploração comercial. 2. Nos contratos de locação de loja em shopping center, é fixada a cobrança de aluguel percentual, proporcional ao faturamento bruto mensal da atividade comercial, e que se justifica devido à infraestrutura do empreendimento, que colabora para o sucesso do lojista locatário. O aluguel percentual representa um rateio do sucesso, que em parte é possibilitado pela estrutura e planejamento oferecidos pelo shopping center. 3. Representa violação contratual a conduta do locatário que, a despeito de ter assumido a obrigação de efetuar o pagamento do aluguel com base no faturamento, instala ponto de vendas de produtos pela internet , que são faturados em nome de empresa diversa. Os ganhos com o comércio eletrônico não ingressam no faturamento da loja situada no shopping center locador e, por isso, não integram a base para o cálculo do aluguel. 4. A violação contratual acerca da contraprestação devida pelo uso do espaço locado autoriza o desfazimento da locação, nos termos do art. 9º, II, da lei 8.245/91. 5. Não se pode presumir a aquiescência do locador apenas em razão das renovações contratuais, uma vez que ele ainda não tinha ciência da sonegação de parte do aluguel. 6. Recurso especial provido.

(RECURSO ESPECIAL 1.295.808 – RJ (2011/0286411-0) RELATOR: MINISTRO JOÃO OTÁVIO DE NORONHA RECORRENTE: MULTIPLAN EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS S/A E OUTROS ADVOGADOS: GUSTAVO HENRIQUE CAPUTO BASTOS E OUTRO(S) DANIEL FERREIRA DA PONTE E OUTRO(S) RECORRIDO: LOJAS AMERICANAS S/A ADVOGADOS: JORGE LUIZ DE CARVALHO VELLOSO E OUTRO(S) ANDRÉ FONSECA ROLLER E OUTRO(S) FERNANDO TORREÃO DE CARVALHO E OUTRO(S))

Extrai-se, portanto, que há precedente que sustenta a possibilidade de o empreendedor considerar para fins de aluguel percentual os valores faturados através de e-commerce. Por isso, a importância de conhecer os termos dos contratos de locação entre lojistas e empreendedores de Shoppings com o objetivo de evitar surpresas que possam prejudicar ainda mais as atividades dos lojistas nesse momento.

 

5.    Conclusão

Neste artigo, tratamos sobre o conceito de contratos de locação em Shopping Centers e qual a sua natureza jurídica e obrigações impostas àqueles que os celebram. Além disso, contextualizamos este assunto à luz do “novo normal” imposto pela pandemia gerada pelo Coronavírus, passando por estudos sobre o impacto econômico neste setor, e, consequentemente,  quais são os pontos aos quais lojistas e empreendedores devem se atentar ao rediscutirem seus contratos de locação em Shopping Centers.

No atual contexto em que vivemos, uma boa notícia é a de que os tribunais estão, sim, endereçando as demandas econômicas das lojas situadas em Shoppings ao reconhecerem a possibilidade de revisão contratual e suspensão ou diminuição, pelo menos, de aluguéis . Conforme abordamos no artigo, a concessão de revisão destes termos contratuais dependerá de diversos fatores, sobretudo conforme o regime de funcionamento das lojas (se estão funcionando, ainda que de forma reduzida ou através da modalidade de delivery, ou fechadas), como vimos em nosso levantamento jurisprudencial.

Esperamos que este overview tenha sido de alguma ajuda na tentativa de melhor compreensão sobre o  regime jurídico de contratos de locação em Shopping Centers e o complexo momento que estamos vivendo. Nosso time de contratos está à disposição para esclarecer eventuais dúvidas sobre esta matéria.

 

 

                   

NOTAS E REFERÊNCIAS:

Notas

[1] FOLHA DE SÃO PAULO. Fechamento de Shopping Center preocupa lojistas. 19 março 2020. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/03/fechamento-de-shoppings-centers-preocupa-lojistas-e-funcionarios.shtml?origin=folha

[2] ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LOJISTAS DE SHOPPING. ALSHOP alerta sobre necessidade de reativação da economia em conferência com Rodrigo Maia. 19 maio 2020. Disponível em https://www.alshop.com.br/portal/alshop-alerta-sobre-necessidade-da-reativacao-da-economia-em-conferencia-com-rodrigo-maia/

[3] DI CUNTO, Raphael. Maia discorda de empresário em debate e defende isolamento social. 20 maio 2020.https://valor.globo.com/politica/noticia/2020/05/20/maia-discorda-de-empresario-em-debate-e-defende-isolamento-social.ghtml

[4] G1. Cidade de São Paulo reabre comércio de rua nesta quarta; shoppings voltam a funcionar na quinta-feira. 10 jun 2020. Disponível em https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/06/10/cidade-de-sao-paulo-tem-primeiro-dia-de-reabertura-do-comercio-de-rua-shoppings-devem-voltar-a-funcionar-nesta-quinta-feira.ghtml

[5] UOL. Lojistas veem movimento fraco e pedem horário maior para shoppings em SP. 12 jun 2020. Disponível em https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/06/12/representantes-de-lojistas-veem-movimento-fraco-e-pedem-horario-maior-em-sp.htm ; MATTOS, Adriana. Após reabertura a toque de caixa, comércio quer mais horas de funcionamento em SP. 15 jun 2020. Disponível em https://valor.globo.com/empresas/noticia/2020/06/15/apos-reabertura-a-toque-de-caixa-comercio-quer-mais-horas-de-funcionamento.ghtml

[6] BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Art. 421 e art. 421-A. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm

[7] O Código Civil determina que toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil, porém, determina que algumas categorias de agentes são considerados “absolutamente incapazes” (os menores de 16 anos), ou “incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer” (maiores de 16 anos e menores de 18 anos, ébrios habituais e viciados em tóxico, aqueles que por causa transitória ou permanente não puderam exprimir sua vontade, e os pródigos). A incapacidade cessa para os menores de 18 anos em algumas hipótese, como a concessão dos pais, ou de um deles na falta de outro, mediante instrumento público, independentemente de homologação judicial, ou por sentença do juiz, ouvido o tutor, se o menor tiver 16 anos completos. Outras hipóteses são: através do casamento; pelo exercício de emprego público efetivo; pela colação de grau em ensino superior ou pelo estabelecimento civil ou comercial, ou pela relação de emprego, desde que, em função deles, o menor com 16 anos completos tenha economia própria. BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Art. 1º, art. 3º, art. 4º e art. 5º. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm

[8] OLIVEIRA, Bruna Sant’Ana; ABREU, Luciana Maria de. Contrato de locação de shopping center: abusos e vulnerabilidade. Disponível em: https://www.viannasapiens.com.br/revista/article/view/134/119

[9] COELHO, Fábio Ulho. Comentários a Lei de Locação de Imóveis Urbanos. In: Oliveira, Juarez de. São Paulo: Ed. Saraiva, 1992.

[10] OLIVEIRA, Bruna Sant’Ana; ABREU, Luciana Maria de. Contrato de locação de shopping center: abusos e vulnerabilidade. Disponível em: https://www.viannasapiens.com.br/revista/article/view/134/119

[11] OLIVEIRA, Bruna Sant’Ana; ABREU, Luciana Maria de. Contrato de locação de shopping center: abusos e vulnerabilidade. Disponível em: https://www.viannasapiens.com.br/revista/article/view/134/119

[12] ÂMBITO JURÍDICO. Classificação dos Contratos de Locação em Shopping Center. Disponível em https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-civil/classificacao-dos-contratos-de-locacao-em-shopping-center/

[13] REQUIÃO, Rubens. Considerações jurídicas sobre os centros comerciais. Página 148.

[14] VILHENA, Felipe Barra Freitas. Aspectos relevantes dos contratos de shopping centers. 2016. Disponível em: https://sapientia.pucsp.br/bitstream/handle/19281/2/Felipe%20Barra%20Freitas%20de%20Vilhena.pdf

[15] BOAVENTURA, Thiago. Aluguel mínimo e em percentual: abusividade em contratos estabelecidos com Shopping Centers. 13 jan 2017. Disponível em https://www.migalhas.com.br/depeso/251784/aluguel-minimo-e-em-percentual-abusividade-em-contratos-estabelecidos-com-shopping-centers

[16] BRASIL Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991. Dispõe sobre as locações dos imóveis urbanos e os procedimentos a elas pertinentes. Situações em que o locador não é obrigado a renovar o contrato de locação não residencial:

Art. 52. O locador não estará obrigado a renovar o contrato se:

I – por determinação do Poder Público, tiver que realizar no imóvel obras que importarem na sua radical transformação; ou para fazer modificações de tal natureza que aumente o valor do negócio ou da propriedade;

II – o imóvel vier a ser utilizado por ele próprio ou para transferência de fundo de comércio existente há mais de um ano, sendo detentor da maioria do capital o locador, seu cônjuge, ascendente ou descendente.

[17] SARAIVA, Alessandra. Pesquisa mostra impacto disseminado do Coronavírus na economia mundial. 08 abr 2020.

[18] ROSENVALD, Nelson. Código Civil comentado. Coordenador: Cezar Peluso. 7ª. Edição. 2013.

[19] TJSP. Agravo de Instrumento nº 2072461-38.2020.8.26.0000. Relator: Kioitsi Chicuta. Disponível em https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do;jsessionid=4F234C18CECF0204F42C440BA106A88E.cjsg1?conversationId=&cdAcordao=13487396&cdForo=0&uuidCaptcha=sajcaptcha_4a31017bd4fc473ba0af9fd1c83e6325&g-recaptcha-response=03AGdBq26gStuMd5u9N2jxTP8ht56y-d5VxXVs1V3CJMHeH3jT7y1Q-ls_FJtdzBFWs8j2qvbaalcZwJsgn4t3lYqoA_1mS-AHpu9qE_WKhsp9kF5yKKsCs5jsT9iBt2WsLxJZm8kzQ_P6UNoMDHkyGcOFMDJCYDxfSKdAmEj1C9Md7yxYoxi-52F6h5xpLqnWsLfMbLuOkXsNPmVCU292-hNqNSk_Saz0LP0v4YkWa0ocHfhgjFRubLKgOX1AtHqpWjemTAU8p19ysE35G3KEq8w4BwdbWho5lrgz_2oRnMC9GwAKfOstaRYiFJwtK-56u1CDmtId-7I5-R4zP727vvWcFNFA6_5_GJH1y1afqMhwrV6eLiMWsKRGGAeB5hfr796noTEPaL13nNhxGU3eXLJAh_7kGfa09AdHBMeJPXKLUCzTyMPvOUxyDSnDbcSQS5feKqz9BtB0ZKX7T1BS7_pcRsZJCrhCtA

[20] BRIGATTO, Gustavo. Nível de descontos de aluguel aos lojistas vai variar caso a caso, diz Iguatemi. 24 jun 2020. Disponível em https://valor.globo.com/empresas/noticia/2020/06/24/nivel-de-descontos-de-aluguel-aos-lojistas-vai-variar-caso-a-caso-diz-iguatemi.ghtml

[21] INGIZZA, Carolina. Lojistas pedem aos shoppings desconto em aluguel para não quebrar. Disponível em https://exame.com/pme/lojistas-pedem-aos-shoppings-desconto-em-aluguel-para-nao-quebrar/

[22] DELGADO, Caroline. Lojistas investem nas vendas pela internet e delivery durante a pandemia do novo Coronavírus em Juiz de Fora. 24 abr 2020. Disponível em https://g1.globo.com/mg/zona-da-mata/noticia/2020/04/24/lojistas-investem-nas-vendas-pela-internet-e-delivery-durante-pandemia-do-coronavirus-em-juiz-de-fora.ghtml ; SALOMÃO, Karin. Coronavírus: compras online crescem e empresas adaptam operações e entrega. 18 mar 2020. Disponível em https://exame.com/negocios/coronavirus-compras-online-crescem-e-empresas-adaptam-operacoes-e-entrega/

[23] Para fins deste artigo, entende-se como modalidade de e-commerce: (i) compra pela internet e retirada do produto em loja física, (ii) compra por meio de terminais eletrônicos no interior de uma loja física para entrega na residência, vinculados a mercadorias presentes na própria loja física ou de algum centro de distribuição.

[24] RAJÃO, Gustavo de Ávila. E-commerce, aluguel percentual e os desafios do empreendedor e lojista em Shopping Center. 21 nov 2017. Disponível em https://www.migalhas.com.br/depeso/269481/e-commerce-aluguel-percentual-e-os-desafios-na-relacao-empreendedor-e-lojista-em-shopping-center

[25] RAJÃO, Gustavo de Ávila. E-commerce, aluguel percentual e os desafios do empreendedor e lojista em Shopping Center. 21 nov 2017. Disponível em https://www.migalhas.com.br/depeso/269481/e-commerce-aluguel-percentual-e-os-desafios-na-relacao-empreendedor-e-lojista-em-shopping-center

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